Garden Abstract
Nuno Amado
Garden Abstract
The apple on its bough is her desire, –
Shining suspension, mimic of the sun.
The bough has caught her breath up, and her voice,
Dumbly articulate in the slant and rise
Of branch on branch above her, blurs her eyes.
She is prisoner of the tree and its green fingers.
And so she comes to dream herself the tree,
The wind possessing her, weaving her young veins,
Holding her to the sky and its quick blue,
Drowning the fever of her hands in sunlight.
She has no memory, nor fear, nor hope
Beyond the grass and shadows at her feet.
Hart Crane, “Garden abstract”, White Buildings (1926). In The Collected Poems, ed. Waldo Frank. Nova Iorque: Liveright Publishing Corporation, 1946.
Gosto deste poema por três bons motivos que não se sobrepõem nem têm necessariamente uma articulação óbvia entre si, até porque se manifestaram em diferentes sessões de leitura. Formulados com toda a simplicidade, esses bons motivos seriam: i) o efeito de perfeição compositiva; ii) o mistério da maçã; iii) a promessa de um “garden abstract”.
Não é por acaso que um site como o “poets.org” entusiasma os seus frequentadores com o apelo optimista “Find and share the perfect poems”: se é certo que tal interpelação poderá suscitar em espíritos mais reactivos a imediata denúncia de publicidade enganosa, não será menos seguro que ela sugere aquilo que qualquer leitor de poesia procura, e por vezes – raras ou não – efectivamente encontra: poemas perfeitos. “Garden abstract” é um poema que provoca esse efeito de leitura, muito graças a uma virtude que talvez só o Yeats de “Adam’s curse” tenha sabido enunciar com precisão: “A line will take us hours maybe;/ Yet if it does not seem a moment’s thought,/ Our stitching and unstitching has been naught. / Better go down upon your marrow-bones/ And scrub a kitchen pavement, or break stones/ Like an old pauper, in all kinds of weather;/ For to articulate sweet sounds together/ Is to work harder than all these, and yet/ Be thought an idler by the noisy set/ Of bankers, schoolmasters, and clergymen/ The martyrs call the world”. Naturalmente, Adão não entra aqui por acaso a propósito deste jardim, mas o que importa ressaltar é o modo como Hart Crane exemplarmente concretiza o postulado de Yeats, a ponto de nos parecer que o ímpeto decassilábico com que os versos se sucedem coincidiria com o ritmo natural da nossa fala, se nos fosse dado falar assim (e como gostaríamos de falar assim…). Quer isto dizer que há uma leitura inicial do poema, ainda avessa a um escrutínio lógico, que é puro deslumbramento acústico e articulatório (sopro, voz, vento), como se o teste de poesia todo se concentrasse no reconhecimento espontâneo de uma experiência sensorial preponderantemente rítmica e melódica que nos leva a aferir o valor inestimável de sons e sílabas, sempre que aproximamos os lábios para repetir suave e languidamente todos os “b” da primeira estrofe, sentindo assim o “slow sound” que Crane menciona num outro verso; ou quando deixamos os dentes intrometerem-se nesta harmonia para que o vento sopre em todos os “f” e “v” da estrofe seguinte. Mas há também qualquer coisa que nos faz ver vírgulas, o que não deverá ser subestimado. Na verdade, talvez eu goste deste poema sobretudo porque nele cada vírgula é um acontecimento. O que se torna particularmente instigante neste acontecimento – o exercício da vírgula – é que ele parece ser o maior responsável pelo grande desconcerto que se gera quando se procura uma coincidência entre a harmonia rítmica e aquilo que poderia ser uma eventual harmonia semântica correspondente (não por acaso, Harold Bloom qualificou este fenómeno como uma “ecstatic cognitive music” que comunicaria aquilo que não pode ser transmitido discursivamente). E é neste ponto preciso que entra (e sai) a maçã com o seu mistério.
Vejamos os dois primeiros versos, “The apple on its bough is her desire, – / Shining suspension, mimic of the sun”. São dois versos perfeitos, se não tentarmos compreendê-los. Graças ao modo elíptico materializado nas vírgulas, porém, Crane faz aquilo que adora fazer (e que de resto explicitou com toda a transparência no seu ensaio “General aims and theories”, onde tentou clarificar os procedimentos que estiveram na base do volume White Buidings a que este poema pertence): formula uma sucessão de metáforas cuja construção associativa assente numa sintaxe muito especial faz perder o termo originário da relação (aspecto que não se atenua, antes se agudiza, com a passagem para o português, idioma pouco dado a neutralidades no qual “maçã” e “árvore” seriam também substituíveis por pronomes femininos, aumentando assim a confusão). Isto é: “shining suspension”, “mimic of the sun” metaforizariam a maçã, o desejo dela, ou a maçã convertida em desejo dela? E ainda: se a maçã é o desejo dela, é-o por uma operação conotativa, ou apenas porque, denotativamente, ela (sujeito) deseja a maçã (objecto)? Não parecem ser questões impertinentes, porque na realidade esta imprecisão dos sentidos expande-se a toda a composição (e talvez seja mesmo esse o seu factor estruturante), a ponto de se tornarem totalmente indiscerníveis os contornos e as posições correlativas dos elementos que habitam o texto e que dentro dele ininterruptamente se deslocam: a árvore com os verdes dedos, ela com as jovens veias que o vento tece, presa pela árvore que por sua vez é sonhada por si. Continuidade dos parques.
Ora, esta ambivalência, tecnicamente inexplicável, tem de facto “um impacto orgânico na imaginação”, como desejou o próprio Crane: e a primeira virtude de tal impacto consiste na expulsão da maçã de um paraíso onde nunca deveria ter estado. Eis o espanto de um novo momento de leitura, aquele no qual se gera a desconfiança perante a atraente interpretação genesíaca de valor judaico-cristão que elementos como “jardim”, “maçã”, “desejo”, “árvore”, ou “ela” logo despertam num leitor rápido. Um leitor menos rápido lembrar-se-á porventura que nesse princípio não era a maçã, mas apenas um fruto, e notará sobretudo que neste jardim das delícias que Hart Crane imaginou não há sombra de Adão – ou que, se ela existe, estará transformada em vento. Claro que tal constatação requeriria um alargamento do comentário a toda a obra, em particular a momentos nos quais volta a ressoar este tópico (autobiográfico), como nos célebres versos de The Bridge “o simian Venus, homeless Eve,/ Unwedded, stumbling gardenless to grieve/ Windswept guitars on lonely decks forever;”, mas o que aqui de facto fascina é a operacionalidade retórica e simbólica de uma sucessão de componentes que, podendo aparentar inscrever-se numa determinada tradição, vão gradualmente deslizando para uma outra possível tradição – mais antiga, mais metamórfica (mais mórfica), menos moralista, mais (auto-)erótica, mais dionisíaca (mesmo que protagonizada por Apolo): a da história de Dafne, ou a da árvore das maçãs de ouro (“shining suspension, mimic of the sun”) guardada pelas Hespérides, ambas narrativas tão afins da “visionária companhia do amor” que Crane assumiu como programa poético e existencial.
No fim, este pomo da concórdia providencia uma leitura tentadora do princípio, ou seja, do título tão sugestivo quanto enigmático do poema, na medida em que “garden abstract” pode ser efectivamente um resumo do Jardim enquanto figura construída por diferentes mitologias (também literárias propriamente ditas, se quisermos convocar o tópico em Wallace Stevens, por exemplo), aqui submetida a um processo de rarefacção que a teria estilizado em poucos traços elementares; há quem, por outro lado, tenha visto antes em “abstract” um programa imagista vinculado a certas práticas pictóricas vanguardistas, tomando em consideração o facto de o poema ter sido escrito no início da década de 20 (perspectiva segundo a qual a aparição de “bough” no primeiro verso perderia toda a sua pressuposta inocência para adquirir um valor agonístico que uma paráfrase abusiva de Pound poderia assinalar: the apparition of these words in the crowd); eu porém gosto deste poema porque vejo no seu título uma outra promessa de resumo e revisão (todo o resumo é uma revisão) – como se “Garden abstract”, ao recuperar mais de um século depois a disposição do título “The human abstract”, nos recomendasse a (re)leitura da obra de William Blake mediada por esses versos da experiência, isto é, se nos quisesse apresentar enquanto epítome da sua obra.
Joana Matos Frias
Joana Matos Frias é Professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Para manter a forma, lê livros, vê filmes e ouve música todos os dias. Gosta muito de poemas perfeitos.