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Pedra-de-toque

O luto fica bem a Electra, António M. Feijó

Sara Carvalho

O Luto Fica Bem A Electra

 

Análise de um poema da autora inglesa Stevie Smith, incluído num volume de 1962 (Poems):

 

 

Tenuous and Precarious
Were my guardians,
Precarious and Tenuous,
Two Romans. 

My father was Hazardous,
Hazardous
Dear old man,
Three Romans. 

There was my brother Spurious,
Spurious Posthumous,
Spurious was Spurious,
Was four Romans. 

My husband was Perfidious,
He was Perfidious
Five Romans.
Surreptitious, our son,
Was Surreptitious,
He was six Romans. 

Our cat Tedious
Still lives,
Count not Tedious
Yet. 

My name is Finis,
Finis, Finis,
I am Finis,
Six, five, four, three, two,
One Roman,
Finis. 

A análise deste poema tem uma progressão típica. O leitor começa por relevar a sua forma simples. Marijke Boucherie define esta forma simples, com precisão, como uma “counting-down rhyme”, exemplificada em lengalengas ou cantilenas infantis como “Ten Little Indians” ou “Three Blind Mice”. O que na contagem decrescente deste poema de Smith se vai sucedendo é uma árvore genealógica que, naturalmente, acaba por repousar no nome do legatário vivo dessas gerações sucessivas. Que esse legatário se chame “Finis” põe em evidência o fim provisório de qualquer genealogia, ou mesmo o seu termo irremediável se nele cessar o ciclo da procriação. Por isso se pode considerar a estrofe final como icónica: Finis, o nome próprio que é todo o último verso do poema, e que, no seu sentido comum, denota o fecho, o término, de alguma coisa, ocupa aqui o vértice do triângulo invertido desenhado por qualquer árvore genealógica. 

 

My name is Finis,
Finis, Finis,
I am Finis,
Six, five, four, three, two,
One Roman,
Finis. 

Há, no entanto, uma diferença entre o nome da protagonista e os nomes dos familiares mortos, que são todos eles adjectivos de étimo latino – “tenuous”, “hazardous”, etc. – tornados aqui nomes próprios pelo acréscimo de uma maiúscula. O leitor rapidamente se apercebe de que estes nomes são fortemente motivados, que não se caracterizam pela arbitrariedade típica de qualquer nome próprio (que o étimo do nome “Irene” seja “paz” não torna Irene pacífica, nem impede que haja Irenes ferozes).

Assim, que os “guardians”, os tutores, curadores ou preceptores, sejam ténues e precários parece explicar-se pelos magros resultados de qualquer processo educativo, que habitualmente deixa no seu rasto uma mera patine ou agregado de informações desencontradas.

Em o pai ser “hazardous”, “arriscado”, “perigoso”, condensa-se o risco associado à função económica dessa figura a que a linguagem jurídica persiste em chamar “pater familias”, o hoje instável, por razões eminentemente políticas e económicas, “cabeça de casal” masculino.

Que o marido seja “perfidious” releva simplesmente de todos os maridos serem pérfidos. Esta afirmação, que poderá parecer demasiado peremptória, se não mesmo, em muitos casos, flagrantemente injusta, permite expor a lógica de leitura destes nomes ad hoc como fortemente motivados: o que neste poema, como na generalidade dos textos literários, se activa são lugares-comuns, estereótipos diversamente submetidos a majorações ou pejorações de sentido que poetas deflectem dos seus usos no sociolecto e no léxico literário. Veja-se, por exemplo, como, majorada, a noite é, para Álvaro de Campos, benévola porque “antiquíssima”, ou como, pejorada, pode, associada ao nevoeiro no título de um documentário cinematográfico, alegorizar o Holocausto. (Como qualquer lugar-comum é, por definição, moldável, a perfídia dos maridos vê-se replicada pela das mulheres, não sendo por acaso que o romance do século XIX trate com insistência o adultério feminino.) 

Se, na quinta estrofe, o filho é subreptício, “surreptious”, é porque neste qualificativo se alude à relativa imperceptibilidade de quem gatinha para um observador na posição vertical, ou, de modo menos pedestre, porque nele se refere a insidiosa surpresa da sua chegada (gatinhando, ou numa gravidez inesperada por lapso na contagem do intervalo das regras, por exemplo). A morosidade do gato (“tedious”) é a característica maior desse pequeno felino na representação literária (em Baudelaire, por exemplo), tal como, aliás, o facto de ser ele o único sobrevivente de todas as figuras referidas no poema resultar da proverbial tenacidade do gato em serialmente se manter vivo (nove vidas em Inglaterra, sete apenas em Portugal).

A figura que falta considerar neste grupo de mortos é a do irmão, Spurious Posthumous, tal como aparece na terceira estrofe. “Spurious”, “espúrio” – hoje habitualmente usado de modo figurado, quer em inglês quer em português, para expor como logicamente falso um argumento –, significa “ilegítimo”. “Posthumous” tem um sub-sentido preciso, aqui operatório, de “nascido após a morte do pai”. A tonalidade jovialmente depressiva de todos os nomes anteriores é agravada por dois índices de agressividade: espúrio e póstumo. Que a rivalidade fraterna seja tão agressivamente exposta é interessante por expor a característica central do poema. Refiro-me à ausência de qualquer estrofe sobre a mãe. De facto, se a ausência de uma estrofe sobre a mãe é notória, a presença tácita dela nos desastres condensados no nome do irmão, Spurious Posthumous, adensa esse silêncio. A ilegitimidade e o nascimento póstumo do irmão permitem mesmo supor uma relação de causalidade com a morte do pai. O poema revela-se assim, pouco surpreendentemente, um romance familiar. Para Freud, o “romance familiar” é a versão, parcialmente inconsciente, que alguém se faz das suas relações com os pais e os irmãos, cujos nexos e modos está condenado a reproduzir, sem que o saiba, em todas as suas relações afectivas ulteriores. O núcleo central deste organigrama, desta distribuição de espectros, é o mais familiar e fatigado dos tópicos, o conflito edipiano.

O poema tematiza o conflito edipiano. Digo “tematiza”, e não que essa estrutura nele sintomaticamente figure, ou dele seja o princípio de produção inconsciente. Estas seriam pretensões genéticas, próprias de um tipo de posição crítica caracterizada por uma espécie de obsolescência congénita, a crítica literária psicanalítica, que um conhecido crítico norte-americano descreveu como análoga ao “Sacro Império Romano”, que nunca foi sacro, nem império, nem romano. Que um tópico particular seja tematizado num texto permite desde logo imputar ao autor domínio sobre aquilo que escreve. A legitimidade deste tipo de imputação tem sido um dos problemas maiores da teoria literária contemporânea. O problema surge até em casos em que essa imputação de controlo se funda em “evidência extrínseca ao texto”.

É este justamente o caso do poema de Stevie Smith. Tendo-o escolhido para ser um de quatro poemas exemplificativos da sua obra num programa da BBC, a autora desmentiu, numa carta, a filiação deste poema num género ligeiro, contrapondo, numa observação sombria que, julgo, não terá agora nada de surpreendente, que “there’s murder hidden in it” [há assassinato dissimulado nele]. E, de facto, a nota sombria que a autora releva no seu poema encontra-se replicada no texto anterior que é o modelo do poema de Smith. Refiro-me a Confessions of an English Opium-Eater, de Thomas de Quincey. (A autobiografia de de Quincey é o livro de que a heroína do primeiro romance de Stevie Smith, Novel on Yellow Paper, tem por hábito citar de cor excertos que lhe agradam por serem bravuras retóricas. Não há, todavia, qualquer referência da autora que associe de Quincey e o poema que nos ocupa.)

No passo das Confissões de de Quincey que é modelo de “Tenuous and Precarious”, o autor interrompe a narrativa de como ficou órfão de pai aos sete anos de idade, e de como foi deixado ao cuidado de “four guardians and of our mother, who was invested with the legal authority of a guardian” [“quatro guardiães e da nossa mãe, que foi investida da autoridade legal de guardiã”]. Esta circunstância, que viria a revelar-se adversa, leva-o a uma digressão relativamente alongada sobre o instituto jurídico da “legal guardianship”, da tutela legal. A questão é-lhe de tal modo íntima que a mera invocação do termo lhe provoca efeitos somáticos: “This word ‘guardian’ kindles a fiery thrilling in my nerves.” [“Esta palavra “guardião” acende-me um pulsar fogoso nos nervos.”] A excitação fogosa que o termo e o tópico lhe despertam é acentuada pela consciência de uma repetida iniquidade histórica: “There is not (I believe) in human society, under whatever form of civilization, any trust or delegated duty which has more often been neglected or even perfidiously administered.” [“Não há (creio) na sociedade humana, em qualquer tipo de civilização, nenhum encargo ou dever delegado que com mais frequência tenha sido negligenciado ou perfidamente administrado.”] Na Grécia e Roma clássicas, tal como se depreende de “muitas notícias incidentais”, este tipo de “autoridade doméstica” prestava-se, acima de todas, à “rapina e ao peculato”. E, se é certo que a relação entre pai e filho era aí “acarinhada com fervor religioso”, “the solemn duties of the tutor (i.e. the guardian) to his ward, which had their very root and origin in the tenderest adjurations of a dying friend... spoke but seldom to the sensibilities of a Roman through any language of oracular power” [“os deveres solenes de um tutor (isto é, de um guardião) ao seu pupilo, que tinham a sua verdadeira raiz e origem nos mais ternos apelos de um amigo na hora da morte... raramente falavam à sensibilidade de um romano com a força de uma linguagem oracular”]. Um tal estado de coisas não passava, naturalmente, despercebido aos próprios romanos, em especial àqueles que, à hora da morte, se viam forçados a confrontá-lo: “This deadly and besetting evil of Pagan days must have deepened a hundredfold the glooms overhanging the deathbeds of parents. Too often the dying father could not fail to read in his own lifelong experience, that, whilst seeking special protection for his children, he might himself be introducing amongst them a separate and imminent danger.” [“Esta calamidade obsessiva e letal da antiguidade pagã deve ter multiplicado exponencialmente as preocupações sombrias que pairavam sobre o leito de morte de qualquer pai. Vezes em excesso terá deduzido da sua experiência de vida um pai moribundo que, no momento em que buscava protecção especial para os filhos, talvez estivesse a introduzir entre eles um adicional perigo iminente.”] Uma tal perversão do instituto de tutela é parte do colapso de todo o vínculo moral na Roma antiga. O casamento, por exemplo, corrompera-se pela ligeireza com que era iniciado, e pela facilidade de o dissolver pelo divórcio, pela “leviandade na escolha e a volubilidade na adesão a ela”. O resultado fora particularmente nefasto: “A relação entre marido e mulher desaparecera, para todos os efeitos morais, entre os romanos.”

Um tão lúgubre relato da iliteracia moral romana é, pois, o modelo da lúgubre adivinha edipiana em que consiste o poema. A relação entre os dois textos encontra-se inscrita na primeira estrofe do poema. Tal como, aliás, o tópico edipiano: os “guardians”, os tutores, implicam a morte do pai, que substituem e cuja função ocupam, como denotam a natureza ténue e precária – aqui eufemismos para a prática eventual do peculato e da rapina – da incumbência que conjuntamente assumiram com a mãe. A natureza “hazardous” do pai revela-se, neste caso, bem mais vulnerável do que a que é denotada pela instabilidade abstracta do papel económico do pater familias.

A violência que satura o poema é afim da violência que satura o conflito edipiano. Posições feministas radicais, por exemplo, que deploram esta estrutura de Freud como um dispositivo clínico ao serviço da heterossexualidade compulsória, consideram-na não um invariante universal, como pretendia o seu criador, mas uma construção opcional. Uma dessas posições críticas poderá decidir que a sua natureza opcional a torna dispensável, e que devemos simplesmente ignorá-la como um arcaísmo, o eco de uma barbárie. O poema de Stevie Smith poderia, neste contexto, ser cooptado como afim dessa agenda libertadora, ao expor a violência homicida do conflito de Édipo. Consideremos uma outra afirmação da autora em que ela revela o jovial (cheerful) impulso homicida do seu texto: “It is a word-play poem (on Latin endings to adjectives). But there is murder hidden in it. I think she murdered everybody except the cat.” [“É um poema que é um jogo de palavras (com desinências latinas de adjectivos). Mas há homicídio dissimulado nele. Acho que ela assassinou toda a gente, excepto o gato.”] A afinidade política assim conjecturada entre o poema e a agenda de emancipação radical referida pode, no entanto, ser instabilizada por uma outra afirmação da autora que revela como o poema parece exceder todo o conteúdo político, ao recentrar no sujeito a desolação e a violência do seu texto: “I’m awfully afraid of novels... In a poem you can turn the emotions and feelings onto someone else, onto different characters. You can invent stories... The poem can claim to be about a cat but it is really about yourself.” [“Tenho um medo terrível de romances… Num poema podemos atribuir os sentimentos e emoções a outra pessoa, a diferentes personagens. Podemos inventar histórias… O poema pode pretender ser sobre um gato, mas ser, de facto, sobre nós próprios.”] 

Versão levemente revista de um excerto de um ensaio publicado aqui: António M. Feijó, "O Luto fica bem a Electra, A Teoria do Programa, eds. António M. Feijó e Miguel Tamen. Lisboa: s.e., 2007.